O Consumo das Mentes ou a loucura pela absorção
O processo que hoje devora mentes modernas não difere muito da fagocitose. Assim como a célula engole uma partícula sólida para digeri-la, as mentes do século XXI são engolidas por uma vontade primordial que a usa em proveito próprio.
Dentro de um mundo virtual sem limites físicos e de volátil moralidade, a fagocitação das mentes é fácil, quase imperceptível. A avalanche de ideias e diversidade de expressões tolhe o livre pensamento em algo banal, sucateado, presa fácil de vontades universais que pretendem modelar o destino da humanidade.
Ideias têm poder. O mundo como ideia atrai quem cobiça mudar a realidade. Durante sua palestra para a primeira Conferência Jefferson de Humanidades, em 1972, Lionel Trilling disse:
“Se observarmos a história da Europa entre a revolução puritana na Inglaterra do século XVII e a revolução, ainda mais drástica, ocorrida na França do final do século XVIII, necessariamente perceberemos um elemento novo na vida do homem: o poder cada vez maior das ideias.”
— Lionel Trilling, A Mente no Mundo Moderno
Trilling expõe a queda de confiança na mente moderna. O aumento do poder das ideias traz um aumento de sua participação na sociedade. Já não se restringem aos intelectuais ociosos discutindo e tomando chá. Elas criam políticas que afetam tudo entre o lar e a nação. Hoje a ideia que se faz da mente foge do propósito libertador de ser um fim em si mesmo, para servir ao propósito sombrio de ser apenas o fim.
A ideia primordial é a de que todas as mentes devem ter um objetivo: o melhor para a humanidade. Fofo, mas tem um porém: cada mente vai apontar para uma direção diferente nessa busca. E se outra pessoa não acredita em nesse mundo perfeito? É Monstro, é insano, é traidor, execre-o mate-o fagocite-o e descarte-o.
A grande batalha da mente livre não é contra a opressão, como muitos imaginam, mas sim contra a supressão. Tornou-se rotineiramente fácil apontar culpados afinal, todos são culpados. Você é culpado. Só precisa perguntar para a pessoa certa. Homens? O grande mal das mulheres. Mulheres? Culpadas pelos problemas dos homens. Os pais estragam seus filhos e os filhos acabam com os pais. Já o governo é um problema para todos e, ao mesmo tempo, todos são um problema do governo. O que cada um faz é selecionar sistematicamente indivíduos com base em características puramente superficiais (gênero, parentesco, função na sociedade, etc.), amarfanhá-los numa massa disforme e gritar lobo. Não há chance para diálogo, compreensão ou sequer tolerância. Quem vai convencer os fazendeiros e seus forcados é quem gritar melhor. Ideias morrem para alimentar a destruição de outras ideias.
Trilling enuncia os perigos que a mente corre. Mesmo as instituições com o propósito de alavancar conhecimento tornam-se escravas da vontade por escravizar. As universidades são assaltadas pela higienização mental. Uma intensa lavagem onde uma linha é traçada e nunca cruzada. Atrás da linha está o correto, o puro. Depois dela está o que precisa ser fagocitado. À força, sendo necessária ou não.
“Além disso, nenhuma observação do declínio da confiança acadêmica pode negligenciar o efeito de certa tendência recentemente consolidada no interior dessa comunidade, tanto entre professores quanto alunos: a tendência ideológica que rejeita e busca descreditar o próprio conceito de mente. (…) aqueles que a assumem estão certos de que o conceito de mente que se tornou tradicional na civilização ocidental constitui princípio que moldou a cultura moderna em seus aspectos mais desumanizadores e funestos.”
— Lionel Trilling, A Mente no Mundo Moderno
Em Terra Nostra não está muito melhor:
“Para quem está devidamente cooptado por este centro de poder, independente do espectro político, a liberdade humana — um valor permanente que deveria ser defendido pelo intelectual com todas as suas forças — , não é um princípio e sim apenas um meio. O fim é o surgimento de uma ideologia que, para se manter viva, deve-se renovar pelo mito da “revolução permanente.”
— Martin Vasquez da Cunha, A Poeira da Glória
Quem de nós consegue medir suas ideias de acordo com a realidade, sem ser arrastado por uma correnteza de medo para as profundezas do rancor? Pensar é um ato digno, desacreditado por décadas, quiçá séculos, de fagocitose mental. Pensamos que sabemos pensar, mas o que sabemos é consumir. Soterrar o outro debaixo de camadas e mais camadas de razões injustificáveis para atos sombrios. Levamos sua liberdade a óbito e devoramos o que sobrou.
Imagina você que alguém lucra com isso? Meu caro, faz de sua pobreza o centro do mundo. Um prazer muito mais complexo estimula a mente humana: a vitória. A conquista da vitória (nenhuma ofensa aos habitantes de Vitória da Conquista) é combustível para uma máquina de felicidade dantesca capaz de processar tudo que existe. Sexo predatório, furar fila para pegar a última vaga no estacionamento, liderar a corrida maluca por seguidores no twitter são apenas alguns exemplos. O êxtase do poder sobre outro ser humano nos faz ir aos limites da imaginação.
E o limite da imaginação é a imaginação em si.
Ela não tem um começo ou fim. Um pequeno dissabor de imaginação pode beneficiar ou destruir o amor, o jogo de truco ou um plano de negócios. Mas para tanto, uma ação precisa ser realizada. Onde a imaginação permanece solitária no interior da mente não há maneira concreta de mensurar seus efeitos. Podemos especular. Vamos especular. Mas não podemos afirmar.
Porém, vamos sim afirmar. Fazemos isso sempre.
Trazemos nossa especulação à tona. Criticamos, analisamos, tecemos soluções e damos tudo como garantido. Sem dó, sem piedade. Transformamos em rival a mente do outro, em poeira de sangue sua imaginação. O embate se estabelece com critérios absurdos tirados do fundo de uma insanidade passiva, tida como necessária. Explodimos bases de argumento com a dinamite da vilificação; derrubamos naves de opiniões com mentiras antiaéreas; por fim, a bomba nuclear: censura. Mata-se tudo, a topografia do pensamento é nivelada por baixo, seu solo envenenado.
Orwell alertou sobre essa batalha perdida. Mais do que um apelo anticomunista, 1984 é pânico contra uma ação policial, judicial, fagocital do pensamento. O livro traz um sentimento atual. Nosso medo em expor uma ideia maligna só não é maior do que nossa gana em expor a ideia maligna do outro. A vitória é nossa, estamos do lado certo da história…
“– Dou-me a esta trabalheira contigo, Winston, porque vales a pena. Sabes perfeitamente qual é o teu mal. E sabes há muitos anos, embora lutasses contra o conhecimento. És mentalmente desequilibrado. Sofres de memória defeituosa. És incapaz de recordar acontecimentos reais e pensas que te lembras de outros, que nunca tiveram lugar. Felizmente, é curável.”
— George Orwel, 1984
Nosso mundo está oco. Tudo o que cresce em nosso terreno mental é assassino. O suco radioativo da ganância cria bombas maiores. Retaliação gera retaliação. Cedo ou tarde tudo acaba.
Não há uma solução exata. Apontar para uma solução é fazer parte do problema, é assumir que não existe desenvoltura suficiente na mente do outro que seja capaz de sobrepor a sua; portanto, ele que escute. Não é assim. Mas há de se pensar sobre a necessidade de certos atos. De se lutar o “bom” combate que só faz sentido para você e seu grupo. Perdas de pontos de vista, de vivências e desavenças que movem o mundo em direção à clareza e abrangência, essas são as consequências.
“Não se trata de tentar encontrar uma solução definitiva para as mazelas mundanas. Trata-se da única coisa realmente sensata a se fazer em um suposto estado de urgência: não meter os pés pelas mãos. (…) trata-se de resgatar a prudência e não a insurgência.”
— Francisco Razzo, A Imaginação Totalitária
Deixe suas armas. Deixe dizerem o que for. E diga o que veio dizer, ouça o que tiver que ouvir. Percebe como a fala do outro não machuca? Que quando você sente a pele arder é porque acendeu o isqueiro? Você não quer ouvi-lo. É mais fácil uma dor sem fim do que encarar um simples fato: você não sabe de tudo. Talvez não saiba de nada. Ele também não. Triste e engraçado é saber que o ódio é mútuo porque ambos se odeiam pela mesma razão. E se atacam pela mesma razão. Quem morre é silenciado, quem vence ganha mais ódio para a sua vida. Assim se organiza o fim da beleza da mente, morta por sua própria capacidade. Cresce o monstro do bom perjúrio, alimentado pela fagocitose. Ocos são os homens, chata é a terra.
Humanidade? Nunca ouvi falar.
“Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui elas recebem
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.
E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam a pedras quebradas.”
— T. S. Eliot, Os Homens Ocos